O sonho de uma médica

  





Eu era muito menina, mal entendia o significado dos termos e das palavras, porém recordo-me que certa vez, papai olhou para mim e disse:
- Um dia esse jaleco vai ser seu!
Respondi piscando o olho e continuei brincando com minhas bonecas. Entretanto, como desejo de pai, parece ser mais forte que maldição de bruxa de contos de fadas, lá estava eu, diante de um diploma, canudo, que a meu ver, era um absurdo! Não sabia se chorava ou se sorria. Algo de precioso eu tinha, mas pairava a incerteza se realmente, era de vontade minha.
A noite está estrelada, a insônia insiste em permanecer nesta quente madrugada. Eu preciso sonhar para esquecer que estou cansada. Penso... ”Viver em um mundo globalizado me deixa muito agitada. Conseguir relaxar a mente e o corpo, atualmente é quase uma piada!”. Deitada sob a luz da penumbra, eu reflito sobre uma angústia profunda: “Sutilezas ou incertezas da medicina?”.


Quase quatro horas da manhã. A chuva cai e o sono não vem. Molho os cabelos, tomo água, como gelo. Que desespero! Uma lágrima escorre sobre o travesseiro. Vinte anos de profissão, pediatra é a minha especialização. Mas era o teatro a minha verdadeira e íntegra paixão. Logo, o despertador vai tocar e minha rotina diária recomeçar. Enquanto, eu espero pela luz da aurora, escuto a melodia do rouxinol, que canta sobre a minha janela, me perco em meus pensamentos... Várias imagens surgem em minha cabeça, e fazem um flash back do meu passado.
Sempre quis ser atriz. Nunca fui muito regrada, comportadinha, embora dissessem que eu tinha cara de anjinha. As bochechas eram coradas, repletas de sardinhas, a pele era muito branquinha e os olhos azuis retratavam a típica alemoazinha.
- Parece uma bonequinha – dizia minha avó Loreta. Lembro-me que nos finais de semana, assistíamos desenhos animados, comíamos brigadeiro e jogávamos dominó. Minha avó materna era a única pessoa que entendia meu lado artístico. Era como se ela enxergasse por detrás da minha alma. Aos sete anos de idade, em plena Primavera, ela me presenteou com a fantasia da Branca de Neve. Eu dançava, cantava e falava para todos meus familiares que eu era a Bela Adormecida, a princesa mais bonita. Futuramente, no Natal, meus pais me presentearam com uma ambulância de brinquedo. Eu achava que ela fazia muito barulho, e não me acrescentava nada. Fiquei triste e emburrada. Que decepção, não era esse o meu desejo. Sentada ao pé da lareira, minha avó se dirigiu em minha direção, e me cochichou ao pé do ouvido:
- Tenho uma surpresa pra você!
De repente, me reparo com os olhos arregalados, quando vejo um pacote enorme, todo avermelhado com bolinhas brancas, atrás do pinheiro de Natal. Estava tão desolada com o presente que recebi dos meus pais, que nem percebi que havia um embrulho estranho, por detrás daquela árvore tão imensa e enfeitada. Abri ansiosamente e gritei:
- Que legal outra fantasia!
Contudo, dessa vez, era da mulher maravilha. Eu dramatizava igual, como nos filmes. Nas brincadeiras da escola eu sempre interpretava o papel principal.
Sempre fui muito aplicada aos meus estudos. Minha família pertencia a uma geração que literalmente, cultuava a medicina. Era uma condição imposta a quase todos os meus parentes. Todavia, eu me sentia diferente, devido a minha grande sensibilidade pela arte.
Minha avó materna, Lolô, como eu a chamava, era minha única referência artística. Quando mais moça, ela havia sido bailarina. Contemplava música clássica como eu, e brincava comigo, encenando histórias infantis. Vovó era a minha inspiração, eu a admirava. Foi através dela, que comecei a apreciar a arte. Certa vez, vovô me disse:
- Alemoa, vamos conhecer o hospital onde o vô trabalha?
Eu retruquei com a cabeça, expressando um não. Parecia que todas as células do meu corpo se revoltavam, quando ouviam a palavra hospital. Mas Lolô, ao trocar olhares comigo, compreendia a grandeza que enriquecia meu ser, meu espírito, minha alma de artista, e respondeu:
- Acho que a Joaninha prefere ir ao teatro comigo, ou ao museu, cinema, ou em qualquer outro lugar que reflita a essência de sua vocação.
Eu tinha dez anos, nem sabia o significado da palavra vocação, mas um sorriso se estampou em meu rosto, quando ouvia minha avó pronunciar esta palavra.
Toca o despertador. Minhas pálpebras estão cansadas, pesadas. Os raios de sol iluminam a penumbra que cobre meu quarto. Sinto a fresca brisa da manhã que entra pelas arestas das venezianas. Solto um bocejo que expressa fortemente a minha preguiça. Mais uma noite mal dormida. O peso do meu corpo cai sobre os meus pés. Levanto, molho o rosto e desembaraço os cabelos. Olho para o relógio, o tic tac me irrita. Estou novamente atrasada! Tenho uma cirurgia marcada. Tomo dois goles de café com leite e me visto apressadamente. Enquanto eu me aprecio no espelho, enxergo meu passado, como se ele estivesse por vir à tona a qualquer momento, Josefa alisa meu jaleco. Ela já trabalha comigo há dez anos. É mais que uma simples diarista, arrumadeira, Josefa é uma grande amiga e companheira. Lembra os traços da minha avó. Sempre sorridente e muito caseira. Vida de médico é muito apressada, porém corriqueira, sem emoção. Eu precisava de alguém que me fizesse sorrir, além de me ajudar a cuidar da casa.
- Josefa, não acho minha bolsa!
- Está na sala Dona Joaninha, ao lado dos seus livros na estante.
Ao me virar para alcançá-la, deparei-me com o retrato de minha avó. Sua face feliz inspirava o meu desejo de ser atriz. Boas lembranças invadiam minha mente, eram emocionantes todas as cenas da minha vida, quando minha avó amada e querida estava viva. Sem sua presença, perdi meu brilho. Sem seu sorriso para me incentivar, a medicina veio a ocupar o seu lugar. Eu precisava de um apoio para meu sonho se realizar.
Pego a bolsa, visto meu jaleco, olho para o retrato... Penso: “Palco ou hospital? Qual será o meu lugar?”. Algumas pessoas dizem que há sempre tempo pra recomeçar.  Quando retorno a minha casa, tenho o hábito de olhar-me no espelho, já que a vaidade me acompanha desde menina. Minha avó dizia que eu era muito exibida, mas era um exibicionismo de artista. Minhas rugas falam comigo, e me dizem que o sonho de ser atriz já passou. Não sou uma médica displicente, pelo contrário, atendo muito bem meus pacientes, mas minha alma sente falta da paixão, da sensação de interpretar várias vidas, personagens, sabores, cores, amores.
Já está amanhecendo, e os raios de sol que cintilam em minha janela, me induzem inspiração. Abro a porta, respiro o ar fresco da manhã, por segundos, jogo fora meus conflitos e frustrações internas, meus medos de não saber o que sou, ou o que quero ser. De repente, levo um susto, abro os olhos, é Josefa gritando que esqueci a chave do carro. Poderia ser mais atenta, mas uma forte inquietação fez com que eu abrisse a porta da casa naquela quente e ensolarada manhã. .Mas, à tardinha choveu, parece que o tempo gosta de brincar comigo, e com meus sentimentos.
Saio do hospital, desligo o alarme do carro, coloco meu jaleco dobrado no banco detrás ao lado do jornal. Penso que aos quarenta e poucos anos, minha vida deveria ser estável, normal, não financeiramente falando, mas no emocional. O que é estar realizada? Paro na sinaleira, minha avó me dizia que no final, nós mesmos escrevemos o nosso conto de fadas. Dobro a esquina, vejo um anúncio na calçada informando sobre seleção e teste de atores. Fico parada, tonta, perplexa, meio animada. Alguém buzina e grita, e aí não vai andar? Esqueço do carro, do trânsito, até de mim mesma, procuro uma caneta, não acho, memorizo o telefone, talvez seja um sinal. É agora está verde pra mim!


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